Não faz muito tempo. Atravessar a Baia da Guanabara só de ferryboat ou o Rio São Francisco, entre Petrolina e Juazeiro, só de balsa. Viajar de Tabatinga ou Coari a Manaus, só de barco. Comer milho verde só em novembro, frango assado, só aos domingos, em casa. Acompanhar os jogos de futebol dos campeonatos estaduais, só pelo rádio a válvula, anterior ao de pilhas, com muito chiado e super aquecimento.
Nos anos 60, exigia-se paciência de Jó. As rodovias, precárias, de terra, com muitos buracos, lama ou poeira causavam muito desconforto. Carroças e animais dividiam espaços nas ruas. Morria-se de nó nas tripas, tuberculose, malária e sífilis. Mas, a maioria mesmo, era de velhice. Diarreia, dor de cabeça, gripes e resfriados eram curados com chás e simpatias. Tiravam-se bichos do pé com agulhas de costura, berne com toucinhos de porco, lavavam-se cabelos com sabão feito em casa. Pães, pizzas e doces, somente os caseiros. O leite, fiado, era entregue bem cedo, em Bela Vista, pelo Sr. Carneiro.
Ir ao armazém fazer compras era oportunidade para atualizar os acontecimentos, as novidades, as fofocas. Um longo balcão dividia espaços. De um lado, os clientes, do outro, os atendentes, geralmente os donos dos armazéns. A todos, o Sr. Tomacito Vieira, um dos mais loquazes interlocutores, cumprimentava pelos nomes e perguntava sobre a família. Assim acontecia em todos os estabelecimentos, de Nunca Te Vi, Água Doce a Cancha. As compras eram anotadas em cadernetas. Havia respeito e confiança.
Um dos mais aguardados programas para a criançada era o circo, armado na parte baixa da cidade, próximo do estabelecimento comercial dos Palmieri. Momentos registrados em máquinas fotográficas Kodak em filmes de 12 poses.
Bacalhau, sardinha, mortadela e miúdos de boi, como rins, fígado, rabo e miolos eram menosprezados. Em nome da economia, sapatos tinham lâminas de ferro nas pontas e nos saltos. Cortar cabelo, fazer as unhas e engraxar sapatos eram atividades domésticas. Preparar comida em fogões de lenha, lavar roupas em tanques ou nas margens de rios, cuidar da casa e dos filhos eram tarefas exclusivas para mulheres. Aos homens cabia rachar lenha, puxar água de poço com baldes ou com bomba d`água com alavanca manual.
Alunos cantavam o Hino Nacional antes das aulas, todos em uniformes impecavelmente limpos e passados. Usava-se muita goma. Nenhum pio se ouvia nas salas de aula. Dirigir-se à professora sempre acrescentando a palavra Senhora. O Pai Nosso era orado com fervor. Nenhum pedaço de papel era jogado no chão.
A sala da casa era local exclusivo para adultos receberem visitas. Daí a denominação. Não se permitia a presença de crianças, mas a geladeira a querosene tinha lugar de destaque na sala. Símbolo de status.
Na hora das refeições era sagrado, antes, fazer as orações de agradecimento. Ao se encontrarem, as crianças pediam bênção aos mais velhos e nunca utilizavam o pronome você. O dono da casa tinha local reservado na cabeceira da ampla mesa. Enquanto ele não se servisse, ninguém ousava tocar nos pratos.
Cartas eram elaboradas com caprichosas caligrafias, usando-se caneta e tinta Parker. Cursos e exaustivos exercícios em cadernos de caligrafia permitiram ingresso de muitos em universidades e acesso a bons empregos. Nestes, além disso, exigiam-se pelo menos 900 toques datilográficos por minutos, em arcaicas máquinas de escrever Remington e Underwood. Cartas românticas recebiam fragrâncias de perfumes. Participar de novenas, procissões, não faltar a velórios, orar em voz alta, comungar aos domingos faziam parte das obrigações religiosas. Faziam bem ao espírito. Estavam de bem com os deuses.
Ao término do dia as famílias se reuniam em frente às casas, sentavam em bancos de madeira, colocavam as conversas em dia e contemplavam o movimento nas ruas, onde as crianças brincavam com bolinhas de gude.
Antigamente – não faz muito tempo – era assim.
Por Hiroshi Uyeda